Leitura: Êxodo 31.12-17
Texto: Marcos 02.23-28
Meus irmãos,
O evangelho de Marcos foi escrito com o objetivo de apresentar principalmente aos não-judeus a Jesus como o filho de Deus. Isso é-nos dito pelo próprio Marcos já no primeiro versículo do evangelho: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. E ele fez isso de modo um tanto diferente do dos outros evangelhos porque o seu foco não estava nos discursos de Jesus, mas na sua prática e obra. Ele apresenta questões doutrinárias não com discursos teológicos, mas com cenas do ministério de Jesus. Esse é um dos motivos de o evangelho de Marcos ser o menor comparado aos outros três.
Ele faz questão de apresentar Jesus como o homem, que comeu com os seus discípulos, que se angustiou e se enfureceu, que adormeceu. Mas, ao mesmo tempo aponta para a natureza divina de Jesus, relatando que ele era aquele que tinha autoridade sobre os demônios, sobre a natureza, sobre a doença e por fim a autoridade para perdoar os pecados. Com isso, Marcos manifesta especialmente ao mundo gentio, que foi possivelmente quem recebeu este evangelho, um Jesus poderoso, o filho de Deus, com toda a autoridade dos céus.
E esta é exatamente a principal questão que envolve o nosso texto. Este texto está dentro de uma seção maior, que coloca Jesus num confronto com os judeus, contra os fariseus. Neste confronto, o evangelho mostra que ele tinha o poder de expandir os antigos significados para “novos” significados. Cada vez que vinham a ele para confrontá-lo em alguma área, ele revelava essa autoridade.
Esse é exatamente o contexto de nossa passagem aqui. Ela surge de uma discussão acerca do jejum, e a partir disso revela a necessidade de enxergar as práticas antigas sob a perspectiva do evangelho, como no caso do sábado. É necessário entender que as leis do Antigo Testamento tem relação com o evangelho. E não é diferente em relação ao dia de descanso.
A questão é que o quarto mandamento tem relação com o evangelho e, se tem relação com o evangelho, tem com Cristo. É isso que estás sendo ensinado aqui nesta passagens: que Cristo é quem dá o verdadeiro sentido do sábado e por isso tem autoridade sobre ele. E eu quero mostrar isso neste texto por meio de duas perguntas.
- O que faz Jesus no dia de descanso?
A própria pergunta já nos conduz a um entendimento de que não algo que aconteceu por acaso. Esse acontecimento tinha um propósito. Percebemos isso no modo como Marcos registra a ação e as palavras de Jesus.
O texto começa, no verso 23, com Jesus passando pelas searas. Não foi um acidente; Jesus caminhou até lá. Além disso, o texto diz que Jesus não os discípulos aconteceu de atravessar as searas. Sabemos que Jesus não estava sozinho, mas aqui é narrado como se Jesus é quem tivesse conduzindo a todos para esse lugar.
E acontece que, famintos, naturalmente os discípulos de Jesus começaram a colher espigas para comer. Para os judeus mais conservadores, isso era quebra do mandamento. Eles levavam o 4º mandamento muito a sério. Reconheciam que este mandamento estava enraizado na criação e atestava a boa ordem divina. Também entendiam, com base nos profetas, que o sábado era um sinal da aliança entre Deus e o seu povo (Ez 20:12). Então, isso levou a alguns, na tentativa de demonstrar zelo, a fazer tantas regras que iam de uma extremo ao outro.
Na tradição judaica, havia várias regulamentações sobre o sábado. Por exemplo, um pai não poderia carregar seu próprio filho neste dia; era proibido ajudar animais que estavam para dar à luz; ou até mesmo escrever uma carta. Havia uma lista com 39 classes de trabalho, incluindo caçar, amarrar ou costurar mais de um ponto. Chegou-se fazer até uma determinação sobre socorrer vítimas de desabamento. Se houve sobrevivente, ele poderia ser resgatado; mas, se não houvesse, o corpo só poderia ser retirado depois do sábado. Então, fica claro a reação dos fariseus.
Mas Jesus responde a isso com sabedoria. Ele agora conduz os fariseus ao seu propósito de aplicar o evangelho ao quarto mandamento. Ele cita um acontecimento com Davi que está registrado em 1 Sm 21:1-6. E chama-nos a atenção o modo como ele é citado. Jesus cita o acontecimento de Davi aqui com alguns detalhes diferentes do texto de 1 Sm. 21. Lá em Samuel, vemos que nem foi Davi que pegou o pão para comer, mas foi o sacerdote quem o deu. Parece que o Senhor Jesus está querendo focar no que Davi fez. Veja o modo como é narrado em Marcos: “Davi entrou na casa de Deus… e comeu os pães… e deu também aos que estavam com ele.” (v.26).
Davi comeu o pão consagrado como uma exceção à regra. Mas essa atitude de Davi não é citada por Jesus como uma desculpa para a sua atitude, ou como uma quebra da lei. Mas ele a cita como um exemplo, que clarificava o que ele estava fazendo com os seus discípulos naquele momento. Por meio da ação de Davi, Jesus estava ensinado sobre o verdadeiro sentido do dia do descanso.
O sábado como o dia de descanso não era um fim em si mesmo. Não apenas uma lei a ser cumprida sem significado. O dia de descanso foi feito para ser uma bênção para humanidade. Foram essas as palavras de Jesus no verso 27: “E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado”. Para que ficassem bem claro que este dia é um dia de bênção e não de maldição, Jesus coloca o sábado no seu devido lugar: o sábado existe por causa do homem.
Se podemos entender bem essas palavras de Jesus, isso quer dizer que este dia Deus estabeleceu para que o homem desfrutasse da misericórdia e da bondade de Deus. O sábado é para o homem, e não o homem para o sábado. Comparação similar poder ser feita entre o vinho e o odre do verso 22. O vinho não é para o odre, mas o odre para o vinho. “Não se põe vinho novo e odre velho, mas vinho novo em odre novo”.
Para a tradição judaica, o sábado estava acima da existência humana, mas Jesus corrige isso e dá o verdadeiro significado da lei do sábado como uma proteção para a vida, que está em favor dela como serva. Este ensino de Jesus não era contra a lei, ele não estava quebrando a lei. Existem testemunhos de até mesmo mestres judeus que apontam para este mesmo ensino de Jesus. Estes mestres citavam Êx. 31:13, que diz: “Tu, pois, falarás aos filhos de Israel e lhes dirás: Certamente, guardareis os meus sábados; pois é sinal entre mim e vós nas vossas gerações; para que saibais que eu sou o SENHOR, que vos santifica.”. Era um sinal de bênção da aliança entre Deus e o seu povo.
No contexto de criação, Deus descansou e estabeleceu este dia para que a sua obra da criação desfrutasse das bênçãos de Deus na própria criação. Mas, sabemos em que estado ficou a criação após a queda: gemendo. Não há descanso; mas sofrimento. Não há preservação da vida, mas a morte. Exatamente o que estavam querendo fazer com o sábado; usá-lo como uma arma para matar as pessoas, colocando sobre elas um julgo que, na verdade, trazia para elas desespero.
Mas Cristo está ensinado aqui algo diferente. Não! O dia de descanso não é para matar o homem. O dia de descanso é vida. Enquanto a criação geme, Cristo traz alívio no Dia do Senhor. Ele vos santifica. Separa você dessa degeneração pecaminosa, e te dá a vida. Este é o dia do descanso na redenção. Neste dia, Cristo levou seus discípulos para saciarem sua fome, e neste dia Cristo te traz aqui para alimentar a sua alma. É o dia da feira da alma. Aqui Cristo dá a você comida para que você viva em meio a mortos. Ele chama você para comer neste dia para que você vá caminhar entre os moribundos. No Dia do Senhor, Cristo alimenta os seus servos com a sua própria carne e com o seu próprio sangue.
Por isso, minha pergunta para você, nesta manhã, é: com o que você tem alimentado a sua alma neste dia? É a pergunta que você mesmo deve se fazer ao estar no dia do Senhor. Você tem se banqueteado com Cristo ou tem se lambuzado nas ofertas do mundo? Como brasileiros, sei que o futebol é uma de nossas paixões. E não há nada de errado nisto. Mas eu temo que esta paixão seja o que muitos estão comendo no Dia do Senhor. Ou o principal tema de nossas conversas e de nossos pensamentos sejam as decisões ou os acontecimentos políticos. Deixe-me dizer a você: há uma grande diferença entre encher nossas mentes com assuntos do nosso dia a dia e encher nossas mentes do evangelho no Dia do Senhor. E a diferença não está naquilo que é certo ou errado, mas naquilo que alimenta ou não a nossa alma. Essa é a diferença entre conversas vãs e o uso do dia de descanso para o nosso bem.
Por isso, cremos que é o dia para o exercício da misericórdia. É neste contexto que falamos de exercício de necessidade e misericórdia. O que Cristo faz por nós em amor deve ser visto em nós no amor ao próximo. Neste dia, devemos mostrar amor à vida assim como Cristo nos mostra ao socorrer nossas almas. Mostrar misericórdia e amor à vida neste dia não é exceção mas é cumprir o propósito do mandamento.
O Dia do Senhor não é um dia como qualquer outro. É um dia sim especial porque nele Cristo nos leva ao banquete dos céus. Nutra a sua alma com o banquete de Cristo; não entre na segunda feira com fome, porque a consequência disso será que você irá querer qualquer besteira para tentar alimentar a sua alma desnutrida.
- Como Jesus faz isso?
Primeiro, quero chamar a sua atenção para o contexto da passagem. Após a sua tentação, Jesus começou a pregar o evangelho. Ela fazia isso de tal forma que os que o ouviam reconheceram que ele ensinava como quem tem autoridade (1:22). No capítulo 2, ele perdoa os pecados (2:9-11): “Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados – disse ao paralítico: Eu te mando: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa.” Ele chama pecadores para ser seus discípulos (2:17): “Não vim chamar justos, e, sim, pecadores.” Ele refere-se a si mesmo como o noivo (2:19): “Respondeu-lhes Jesus: Podem, porventura, jejuar os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Durante o tempo em que estiver presente o noivo, não podem jejuar.”
Segunda coisa foi que a resposta de Jesus aos fariseus, no verso 24, foi uma refutação ao ensino dos judeus acerca do sábado. Essa resposta de Jesus era um recado aos fariseus de que quem tinha a autoridade para dar o verdadeiro sentido ao dia de descanso era ele mesmo; o mesmo que perdoou os pecados do paralítico, o mesmo que transformou a vida dos pecadores, o noivo. Ele se coloca numa posição de quem tinha autoridade para dar o real sentido do sábado. Ele, não os judeus, não os mestres judeus.
Isso é confirmado na própria alusão que Jesus faz a Davi. Como o ungido de Deus, Davi ensinou que o propósito maior da lei era servir ao homem, e Jesus aqui ensina que este é o propósito maior do sábado. Davi sim foi o maior rei de Israel, mas o precursor do messias, apenas um tipo do rei eterno. E este é o ponto que Jesus está querendo fazer aqui. No evangelho de Marcos, esta é a primeira de muitas referências à relação entre Davi e Jesus. Ele nos ajuda a entender quem é Jesus. Ele é o filho de Davi (10:47), porque descendia de seu reino, mas é o Senhor de Davi (12:36-37), porque tinha autoridade maior do que a dele.
O apelo a Davi nesta passagem é um apelo à autoridade de Jesus como o filho de Deus que é rei. Ele tem autoridade aqui não para comer pães consagrados mas para estabelecer o verdadeiro significado do sábado e cumpri-lo. Seria pouco de mais para a autoridade de Jesus apenas permitir que seus discípulos colhessem espigas. A questão é: como Jesus transforma o sábado de um peso para uma bênção? Como ele pode mudar o entendimento das maiores autoridades religiosas? Com a autoridade do Filho do homem.
Essa é a sua resposta. Como o ungido de Deus, Davi alimentou os seus homens. Jesus, como o Filho do homem, alimentou os seus discípulos. Por isso, “o Filho do homem é senhor também do sábado.”
Alguns entendem que Jesus aqui está se referindo ao fato de que o sábado foi feito para a humanidade, então, o homem, em geral, a humanidade, é senhor do sábado. Mas isso não é verdade. O Filho do homem aqui se refere ao à vocação de Jesus para ser o Filho do homem, mas não como mero homem, mas o Filho do homem de Dn. 7:13-14: “Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.” Até mesmo em seu estado de humilhação, em momentos de sofrimento, a referência ao Filho do homem aponta para o cumprimento do seu ofício divino.
Por isso, a palavra “senhor” do verso 28 no original vem em primeiro lugar. Literalmente é: “senhor é o Filho do homem”. Isto é, o Senhor de todas as coisas, inclusive do sábado. Perceba que Marcos é o único dos evangelistas que coloca esta palavra “também” no verso 28. “Também” quer dizer senhor inclusive do dia de descanso. Ele perdoa os pecados; salva os pecadores; ele é o senhor do sábado.
Isto aponta para quem de fato tem autoridade neste dia, para que é o centro das atenções no Dia do Senhor; é o Filho do homem. O Dia do Senhor é o dia em que os servos se curvam perante o rei, porque Cristo além de ser superior ao sábado é o centro deste dia. Com isso, eu quero perguntar a você: onde você está neste dia? Se você é servo de Cristo é aqui em adoração ao rei que você deve estar. Em Cristo, o Dia do Senhor encontra o seu propósito. Este é o evangelho do quarto mandamento.
Isso ensina que a lei e o evangelho andam de mãos dadas: não ao legalismo, não à abolição do quarto mandamento. O evangelho não anula a lei, nem a lei anula o evangelho. E isso em relação também ao quarto mandamento. O quarto mandamento e o evangelho tem que andar juntos. Os extremos aqui devem ser evitados. E só há uma forma de evitar isso, que é entender o quarto mandamento no contexto do evangelho. O propósito de Deus no sábado só pode ser atingido na pessoa do Filho do homem, porque ele é senhor do sábado, e por isso traz sentido à sua existência.
Eu quero terminar trazendo mais duas aplicações. A primeira delas diz respeito aos que lidam com o quarto mandamento como se fosse um mandamento ultrapassado, e que agora vivemos na graça, na liberdade. Com base neste texto, quero dizer que o evangelho não anula o quarto mandamento, mas, pelo contrário, ele dá o seu verdadeiro sentido. Jesus em momento algum aqui aboliu o sábado, o dia do descanso, que entendemos que é o domingo. Ele não estava agindo aqui com se estivesse dando liberdade aos seus discípulos para quebrar o quarto mandamento. O sentido aqui é que Jesus está revelando qual é o verdadeiro sentido desta lei, que deve sempre ser lembrada no contexto do evangelho.
Então, aqueles que querem arrancar o quarto mandamento da lei, primeiro, não entendem o propósito do mandamento, e, segundo, desrespeitam a autoridade de Cristo, como o Filho do homem, que autentica esta ordem da criação e da redenção. O Filho do homem é o senhor do sábado não para aboli-lo, mas para lhe dar o verdadeiro significado. E, não atentar para este dia é não atentar para a autoridade do Filho do homem.
A segunda aplicação é para os que têm uma tendência a estabelecer certos detalhes a cerca da guarda deste dia, que muitas vezes beiram ao legalismo. A palavra que tenho para esses é que o quarto mandamento não anula o evangelho mas aponta para ele. Se o sábado, o dia do descanso, foi criado para o homem, isso quer dizer que este dia nos traz o evangelho, pois o evangelho foi a obra de Deus em favor dos pecadores. Nenhum pecador vai encontrar de fato favor para sua vida sem o evangelho. O significado do Dia do Senhor está no evangelho. Este é o princípio que deve nortear as nossas atitudes neste dia. Não tire o evangelho do Dia do Senhor, porque assim você perderá a beleza deste dia.
Este dia nos lembra que Cristo alimenta os seus servos com as almas famintas. Neste dia, nossas almas amortecidas encontram vida em Cristo. Neste dia, é nos trazido por Cristo um banquete para nossas almas.
Amém.
Iraldo Luna
É formado em Letras Vernáculas pela UFPE com pesquisas voltadas para a área de linguística de texto. Bacharel em Divindade pelo Instituto João Calvino. É pastor na Igreja Reformada de Brasília. Professor do curso on-line de introdução ao Grego Bíblico no Instituto João Calvino.
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* Este sermão foi originalmente escrito para uso do pastor e não passou por correção ortográfica ou gramatical.