Todos os dias somos confrontados na imprensa com relatórios sobre as atividades de vários “movimentos de libertação” que buscam libertar seu povo ou país da opressão e exploração. Frequentemente essas atividades são de natureza “terrorista”, isto é, buscam intimidar e pressionar tanto cidadãos quanto estrangeiros que não querem tomar partido na luta.
Existem basicamente dois tipos de movimentos de libertação. O primeiro tipo procura derrubar o governo existente e estabelecer um regime mais “democrático” que restabeleça os direitos do povo. Vemos esses movimentos, por exemplo, no Chile, Nicarágua (“Contras versus sandinistas”) e na África do Sul. Quando esses “libertadores” são bem-sucedidos, o resultado nem sempre é tão “democrático” como se reivindicava a princípio, como foi o caso de Cuba, por exemplo.
O outro tipo procura estabelecer uma pátria independente e não se satisfaz com nada menos que a independência nacional. Penso aqui, por exemplo, nos sikhs no Punjab, nos tâmils no Sri Lanka, nos bascos na Espanha, nos irlandeses em Ulster, nos curdos na Turquia, no Irã e no Iraque, e também nos palestinos no Líbano.
Mesmo que às vezes possamos simpatizar com o objetivo de tais “militantes da liberdade” e concordar que a causa deles pode ter aspectos legítimos, os métodos empregados por esses autodenominados libertadores são frequentemente duvidosos ou totalmente espúrios. A pergunta importante é: “Como devemos considerar tais ‘movimentos de libertação’ sob uma ótica bíblica?”
Direito à Autodeterminação?
Para legitimar sua existência e atividade, esses “movimentos de libertação” frequentemente apelam à Carta de Direitos das Nações Unidas. Esse manifesto inclui, além do princípio de “direitos iguais”, também o direito de todos os povos à “autodeterminação”. Isso significa que o próprio povo tem o direito de determinar qual forma de governo prefere, quem ele quer que governe e até mesmo por quais princípios deseja ser governado.
A teoria da autodeterminação1 é importante, pois exerceu forte impacto sobre os desenvolvimentos políticos neste século. Podemos distinguir entre a autodeterminação “interna” pela qual o povo de um país decide qual governo quer, e a autodeterminação “internacional” pela qual povos de vários países se unem para formar uma nova nação. Todos os povos, afirma-se, têm o direito de determinar suas próprias fronteiras unindo-se àqueles que têm o mesmo contexto histórico, raça, costumes e idioma.
Essa ideia de um “estado popular nacional” eliminaria a necessidade de guerra. Todos os povos seriam livres, unidos à sua própria espécie e cultura, e não haveria razão para lutar. De acordo com essa teoria, a causa da guerra é que um povo é dominado por outro. Mas, se todos os povos pudessem determinar livremente sua própria nacionalidade e governo, não haveria guerra!
Perigos da Autodeterminação
Não se pode negar que a aceitação geral da teoria da autodeterminação teve efeitos positivos. Ela suavizou o caminho, por exemplo, para uma descolonização mais rápida nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Deve-se observar, contudo, que esta mesma teoria não impediu, mas, de fato, facilitou a eclosão de várias guerras.
Usando a mesma ideia de um “estado popular nacional” que incluísse todos os alemães, Adolf Hitler passou a anexar grande parte da Europa e preparou o terreno para um grave confronto mundial. A mesma teoria levou a muitas revoltas e guerras civis ou à desintegração de estados já existentes. Eu penso aqui, por exemplo, no violento conflito na Nigéria e Biafra.
O maior perigo dessa teoria é que ela se baseia inteiramente na ideia revolucionária da “soberania popular”. A vontade popular tornou-se suprema; nenhum espaço é conferido às normas e mandamentos de Deus. A posição soberana do Senhor Jesus Cristo não é reconhecida. É a falta de “justiça” que, uma e outra vez, leva as pessoas a lutarem umas contra as outras dentro de seu próprio país e além de suas fronteiras!
O Princípio da Autodeterminação
O que foi mencionado acima não quer dizer, entretanto, que não há mérito no princípio em si. Prefiro não falar do “direito à autodeterminação”, mas vejo a validade do princípio da autodeterminação. De fato, é positivo que povos com mesmo contexto histórico, cultura e língua possam estar unidos como uma só nação. É uma coisa boa que um povo esteja envolvido na eleição de seu próprio governo e que o governo tenha responsabilidade para com seu povo.
Cada povo tem sua própria história e caráter. Quando diferentes povos são artificialmente forçados a viver juntos em uma nação, e uma minoria é explorada pela maioria, o palco para os problemas está, de fato, armado.
Aqui chegamos a uma questão crucial. O princípio da autodeterminação, embora válido, não deve ser defendido por meios violentos, mas de maneira pacífica. Isso pode ser feito através de referendo e consulta internacional. Isso deve ser feito dentro do quadro político existente e não ao se derrubar a ordem estabelecida!
Devemos reconhecer “que, sob a providência de Deus, o mundo foi dividido em muitos povos e estados, todos estabelecidos por Deus sob vários governos”.2 O método deve, portanto, ser de consulta pacífica e não de confronto violento. Isso é especialmente verdadeiro em países onde o governo e o sistema de governo já estão há muito estabelecidos.
O Princípio de Romanos 13
Encontramos na carta aos Romanos certas instruções relativas à obediência ao governo. Encontramos ali as palavras: “porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas” (ênfase minha, C.S.). Em seu comentário sobre Romanos, o Dr. S. Greijdanus explica que o verbo usado aqui “aponta para uma situação definida”. O apóstolo não está falando de uma situação na qual não há governo estabelecido ou onde a anarquia governa. A fase da luta passou; existe uma ordem estabelecida. Sob a providência de Deus, a situação cresceu de modo que existe um governo estabelecido. Como esse governo inicialmente chegou ao poder ou como ele exerce seu mandato, não é mais tão importante; o ponto é que esse governo está estabelecido.
Em tal situação, exige-se obediência. Os erros devem ser corrigidos não pela revolução, mas pela reforma. Comentando sobre a instável situação política no Suriname recentemente, Aad Kamsteeg também se referiu a Romanos 13 e concordou que a palavra que Paulo usa inclui “um elemento de estabilidade”.3 Kamsteeg corretamente adverte que não se pode usar a Bíblia para “esquemas simplistas”, mas argumenta que existe diferença entre uma situação em que há confusão política e instabilidade e uma em que há um governo totalmente estabelecido.
Eu também sinto que Romanos 13 fala, de fato, sobre uma situação em que um certo governo já está consolidado e em que uma ordem específica já foi estabelecida. Então, certamente, exige-se obediência à “ordenação de Deus” (Romanos 13:2).
Deve-se acrescentar que, mesmo em uma situação de caos político e confusão, não se deve recorrer à violência para se atingir algum objetivo. Devemos sempre usar o caminho da consulta e do diálogo pacíficos para alcançar objetivos políticos. Muito mais, então, com relação a um governo “instituído”.
Esforço e Método
A partir do que foi exposto acima podemos tirar algumas conclusões que podem ser úteis para determinar nossa posição em relação a muitos “movimentos de libertação”. Embora possamos, de fato, simpatizar com o propósito de alguns desses movimentos, seus métodos devem ser rejeitados, especialmente quando buscam criar caos em uma sociedade pacífica, que tem um governo estabelecido e um processo democrático em vigor. Não me refiro aqui ao direito de defesa de uma minoria contra os ataques de uma maioria cruel, como poderia ser o caso no Sri Lanka, mas refiro-me especialmente às tentativas de qualquer grupo de forçar sua vontade sobre outro. Isso inclui os sikhs, o I.R.A., os bascos, e qualquer grupo desse tipo que empregue métodos violentos para alcançar seu objetivo.
Sempre que um grupo étnico dentro de um país busca independência, esse objetivo deve ser alcançado na arena política, se necessário, com a assistência e ajuda de outras nações que sejam capazes de usar meios de persuasão pacífica.
Um povo só pode pegar em armas quando é chamado a fazê-lo por um governo legítimo, para se defender contra a agressão e a intrusão. Especialmente quando essa agressão viola a liberdade de religião e de consciência. Na maioria dos lugares em que vemos “militantes da liberdade” atuando, esse simplesmente não é o caso.
Notas:
1 Conforme desenvolvido pelo cientista político italiano P.S. Mancini em 1851; para uma discussão desta teoria, veja Dr. A.J. Verbrugh, Universeel en Antirevolutionair, De Vuurbaak, Groningen, 1983, p. 108ff.
² A. Zijlstra, De Wereldpolitiek in het licht van de Schrift, Goes, 1958, p. 251ff.
3 Nederlands Dagblad, 30 de julho de 1986.
Tradução: Letícia Cortês e Arielle de Eça.
Revisão: Iraldo Luna.
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