Como cristãos, não podemos ignorar a arte. Ela existe e nós somos confrontados por ela. Pintores, autores e outros artistas querem nos mostrar algo sobre o mundo em que vivemos. Eles usam as técnicas de sua arte para confrontar as pessoas com o seu mundo, com elas mesmas e com (sua visão de) Deus.
Nas Escrituras, a arte está presente de duas maneiras diferentes: no conteúdo e na referência a trabalhos artísticos. As Escrituras não são totalmente escritas de maneira artística. Um bom exemplo de estilo muito simples pode ser encontrado nos capítulos iniciais de Crônicas, onde muitas listas de nomes são fornecidos. Isso não significa que esta parte da Bíblia não seja importante; é dito a Israel depois do cativeiro babilônico quem pertencia a qual tribo, algo que eles tinham de saber quando edificaram a vida em Canaã novamente. No entanto, isto não proporciona prazer literário; na verdade, é bastante “seco”. Os Salmos, por outro lado, são produções artísticas. Dispositivos literários são usados, como medidor (cadência) e aliteração. E o livro de Ester, contando a história de Deus resgatando Israel da destruição total, é um relato muito bem construído. O enredo é usado para revelar a situação tensa da qual Deus resgatou o seu povo.
O mesmo se aplica ao Novo Testamento. Por exemplo, Paulo geralmente escrevia em um estilo bastante objetivo, embora às vezes em longas sentenças. De tempos em tempos, porém, ele usava técnicas literárias. Em 1 Coríntios 13, ele usou a repetição e, em Filipenses 2, escreveu uma seção poética. Tal talento artístico é adicionado para realçar o significado.¹ Deus inspirou os autores a usarem a arte para escrever a Bíblia.
Em segundo lugar, a arte é usada no tabernáculo e no templo. Para dar um exemplo, observe que a descrição do candelabro (Êxodo 25.31) mostra que ele é uma peça significativa e ao mesmo tempo bela no tabernáculo. O mesmo se aplica à cortina do tabernáculo, “com querubins trabalhados por artífices habilidosos” (Êxodo 26.1). No templo posterior ao de Salomão, considerável arte está presente nas colunas de bronze, com suas cem romãs (1 Reis 7.15) e o mar de fundição, em pé sobre doze bois (1 Reis 7.23). Deus mostrou que para servi-lo não significa que precisamos rejeitar toda arte. O culto ao Senhor pode ser associado por obras de arte.
Calvino e a arte
Calvino discutiu a questão de como a arte pode ser produzida em um mundo corrompido pelo pecado. Desde que o homem é mal, como ele pode fazer objetos artísticos que são bons e agradáveis? Sua solução é atribuir a existência da arte neste mundo pecaminoso a uma obra especial do Espírito Santo. Ele escreveu:
Enquanto isso, não devemos esquecer os benefícios mais excelentes do Espírito divino, que Ele distribui a quem quer que Ele deseja, para o bem comum da humanidade. O entendimento e o conhecimento de Bezalel e Aoliabe, necessário para construir o tabernáculo, tinha que ser incutido neles pelo Espírito de Deus. Não é de admirar, portanto, que se diga que o conhecimento de tudo o que é mais excelente na vida humana nos é comunicado pelo Espírito de Deus²
O Espírito Santo, de acordo com Calvino, faz mais do que renovar pessoas para que possam crer no evangelho; Ele também trabalha em cientistas e artistas. Como resultado desse auxílio do Espírito, os cientistas são capazes de produzir estudos que contribuam para o desenvolvimento do mundo. Algo semelhante se aplica aos artistas. Visto que o Espírito opera neles combatendo o pecado, eles tornam-se habilitados para produzir obras de arte que são boas. Calvino atribui toda obra de arte valiosa a uma atividade especial do Espírito Santo.
Qual é a base dessa declaração de longo alcance? Quando analisamos cuidadosamente a argumentação de Calvino, ficamos desapontados. Apenas um texto é dado em apoio: o fato bem conhecido de que Bezalel e Aoliabe trabalharam no tabernáculo sob a orientação do Espírito. Não parece ser um argumento muito convincente.
Uma olhada cuidadosa no que as Escrituras dizem confirma nossa primeira impressão. Mencionarei alguns problemas: em primeiro lugar, a Bíblia diz que Bezalel estava cheio do Espírito (Êxodo 31.2; 35.31), mas não diz que Aoliabe e os outros obreiros, também, estavam cheios do Espírito. Pelo contrário, diz que Deus lhes deu habilidade (31.6). Em segundo lugar, o texto diz que Deus deu o Espírito para a fabricação do tabernáculo, não para a feitura de obras de arte em geral (Êxodo 31.7). Em terceiro lugar, os textos não enfatizam que o trabalho resultante deve ser artístico, mas que eles devem refletir fielmente a intenção de Deus (Êxodo 31.11; 36.1).³
Não há base bíblica para atribuir o bom uso da arte ao Espírito Santo.
Arte na criação e pecado
O que, então, é o histórico bíblico da arte? Na minha opinião, a arte tem uma base muito mais ampla na obra de Deus do que Calvino indicou. A arte faz uso de possibilidades dadas na própria criação. Deus deu às pessoas a capacidade de falar. Eles descobriram que a aliteração de sons é agradável ao ouvido e ajuda a lembrar o que foi dito. Eles notaram que os sons têm uma altura diferente, tons diferentes. Eles descobriram que esses tons seguem certos padrões; oitavas, por exemplo, combinam exatamente. Eles podiam distinguir cores diferentes, e descobriram que certas cores se correspondiam bem, e outras se chocavam e pareciam feias se usadas juntas. Em suma, Deus criou o mundo com possibilidades artísticas e criou o homem com a inteligência e a capacidade de fazer uso dessas possibilidades.
A desobediência, o pecado e suas consequências causaram transtornos neste mundo. E também tocou o mundo da arte. Na verdade, os artistas são muitas vezes pessoas que, em seu desejo de auto-expressão, vivem uma vida sem Deus. Eles também podem expressar sua rejeição a Deus e ao seu mundo em seu trabalho. Isso não deve fazer os cristãos se afastarem da arte, no entanto, a arte não é mais do que aplicar aspectos do mundo criado por Deus. Paulo advertiu contra esse tipo de ascetismo quando escreveu:
“Pois tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável” — 1 Timóteo 4.4.
Como, então, devemos olhar para a arte? Os produtos artísticos podem ser avaliados a partir da perspectiva da criação. São as possibilidades que Deus criou no mundo do som, cor, material, etc., usado corretamente em uma obra de arte específica? J.M. Batteau distinguiu vários aspectos:
- Um alto grau de habilidade é exibido ou é uma técnica bem expressa? (A norma da técnica.)
- A imaginação ou a profundidade da percepção estão presentes? (A norma de sentir.)
- Há vivacidade na comunicação ou na transferência de emoção? (A norma da eloquência.)
- A inovação ou um sentido único estão presentes? (A norma da singularidade.).4
Dependendo disso, um produto do artista foi bem-sucedido ou não, como uma obra de arte. Esta é uma abordagem técnica para trabalhos artísticos.
Devemos também avaliar os produtos artísticos a partir da perspectiva da obediência. Dois lados podem ser distinguidos: a mensagem e o meio. Pode-se perguntar qual é a mensagem de um livro ou de uma pintura, de uma música instrumental ou vocal? Quer que eu seja obediente a Deus, isso me faz agradecer a Deus por sua boa criação, ou quer que eu viva por meus próprios desejos? Isso se aplica à seção final da Nona Sinfonia de Beethoven, bem como às letras de um grupo de rock popular.
Além disso, os meios utilizados devem ser considerados. A cena bíblica de Deus expulsando Adão e Eva do paraíso pode ser retratada de tal maneira que a pintura incentive o pecado contra o sétimo mandamento. E a batida de um tambor pode invocar uma atitude rebelde, levando alguém a ser relutante em seguir a vontade de Deus. O interesse pela arte pode tornar-se uma pedra de tropeço, fazendo as pessoas pecarem. Então, a regra de Marcos 9.43 se aplica.
Em tudo isso, no entanto, a arte deve ser vista como uma dádiva de Deus. Deus criou um mundo cheio de possibilidades artísticas. Devemos nos interessar pela variedade da criação de Deus e agradecê-lo por essas possibilidades. Devemos desenvolvê-los e aproveitá-los quando Deus dá capacidade e oportunidade para fazer isso. Em obediência a Deus, podemos considerar e trabalhar nesse mundo que reflete o poder e a divindade do seu Criador (Romanos 1.20).
Notas:
¹ Este aspecto da Bíblia é discutido por B. Wielenga, De bijbel als boek van schoonheid (3. ed; Kampen: Kok, 1931).
² Calvino, Institutas da Religião Cristã, I, II, 16. Usei a tradução de F.L. Battles, na edição de J.T. McNeill.
³ Mais sobre esta questão no meu artigo ‘De Geest in Bezaleel’ em F. H. Folkerts (ed.) Ambt en Aktualiteit (Festschrift C. Trimp; Haarlem: Vijlbrief, 1992) 25.
4 J.M. Batteau, ‘Cristianismo e arte’ em Perspectiva Reformada 2, 10 (agosto de 1983), 22.
Tradução: Morgana Mendonça .
Revisão: Thaís Vieira.
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