A (i)moralidade das pirâmides financeiras

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Pilha de moedas, com um relógio ao fundo

Em 2012, estourou no Brasil uma onda de empresas de marketing multinível (MMN), as quais pareciam despontar como grandes oportunidades de investimento, com uma promessa de alta rentabilidade. Na época, recém-formado em direito, fui procurado por vários amigos que me pediam uma opinião sobre o MMN; e, embora minha posição sempre tenha sido contrária, muitos fizeram ouvidos de mercador e apostaram no negócio.

Invariavelmente, esses amigos amargaram grande prejuízo. Muitas das empresas surgidas na época tiveram seu funcionamento suspenso pelo Poder Judiciário, acusadas de constituírem pirâmides financeiras; outras não chegaram a ser alvo de investigação, mas foram minguando à medida que os empreendimentos mais famosos ruíam sob tais acusações.

Entretanto, novas empresas de marketing de rede começam a aparecer no Brasil e, mais uma vez, os amigos perguntam: Há algum problema (jurídico ou moral) com o MMN? Todo MMN é pirâmide? Um cristão pode, de boa consciência, entrar nesse tipo de negócio?

Pretendo avaliar tais questões em três artigos. Neste primeiro, após descrever em que consiste o esquema fraudulento conhecido por “pirâmide de Ponzi”, exponho sucintamente a sua incompatibilidade com a ética bíblica.

O que é pirâmide financeira?

Na década de 1920, nos Estados Unidos, o italiano Charles Ponzi atraiu uma multidão de investidores para um suposto negócio de compra e venda de selos postais internacionais, chegando a captar um milhão de dólares por dia com uma promessa de retorno de 40% do valor investido, em 90 dias. Porém, dos milhões que passaram por suas mãos, o carcamano empregou apenas 30 dólares na compra de selos; o valor restante foi distribuído entre o próprio Ponzi e os primeiros participantes do esquema.

A fraude se repetiu muitas vezes pelo mundo; no Brasil, casos conhecidos de pirâmides financeiras são os da empresa Boi Gordo, Avestruz Master e Telexfree, esta surgida já na última “onda” de pirâmides disfarçadas de marketing multinível, em 2012.

Uma pirâmide funciona do seguinte modo: uma “empresa” oferta ao público uma oportunidade de investimento de alta rentabilidade; porém, em vez de empregar o valor investido num negócio real, o dinheiro que entra é utilizado para remunerar os primeiros investidores. Os últimos vão bancando o ganho dos primeiros.

O problema óbvio desse esquema é que, quando a entrada de novos “investidores” acaba (o que fatalmente acontece), a pirâmide desmorona, e quem estava na base fica a ver navios. Por essa razão, a prática da pirâmide financeira é considerada crime em diversos países – inclusive no Brasil, onde é tida por delito contra a economia popular (art. 2.º, IX, Lei 1.521/1951).

A ética bíblica do trabalho

Poucos cristãos em nossos dias parecem conscientes de que exista tal coisa como uma teologia bíblica do trabalho. Veem o trabalho como um “mal necessário”, uma solução inconveniente para suas demandas materiais – comida, bebida, vestuário –, mas de modo algum o concebem positivamente, como uma bênção de Deus para o indivíduo, a família e a comunidade humana em geral.

A Escritura, porém, nos ensina que o Senhor é um Deus trabalhador. Todas as coisas que existem são o fruto de uma impressionante semana do diligente, meticuloso e perfeitamente executado trabalho divino, ao fim do qual se ouviu o brado: “Muito bom!” (Gn 1.31). Então, ao criar o homem à sua imagem e dar-lhe o domínio sobre as demais criaturas, o Senhor Deus o chama ao trabalho de cultivar e guardar o jardim (Gn 2.15).

Assim, embora o trabalho sirva para suprir nossas necessidades (“no suor do rosto comerás o teu pão”, Gn 3.19), seu escopo é muito mais elevado. O teólogo puritano William Perkins escreveu que “o fim principal de nossas vidas […] é servir a Deus no serviço dos homens, nas obras das nossas vocações”.1 Quando trabalhamos lícita e diligentemente, estamos “fazendo com as próprias mãos o que é bom” (Ef 4.28) e, por isso, estamos servindo a Deus ao mesmo tempo em que servimos aos homens.

Todo trabalho lícito, portanto, enriquece a existência humana na medida em que seu fruto é o bem comum. O padeiro, o viticultor e o pedreiro são, nas palavras de Lutero, as “máscaras de Deus”, pelas quais ele nos concede diariamente comida, bebida e um lar.

Pirâmide é furto

Segundo Perkins, é pecaminoso e abusivo o comportamento de quem trabalha apenas em busca do benefício próprio, e não do bem comum. “‘Cada um por si e Deus por todos’”, ele diz, “é um ditado ímpio e frontalmente contrário à finalidade de todas as vocações”.2 Não é difícil ver que quem “trabalha” numa pirâmide de Ponzi, na verdade, envolve-se num negócio que não produz riqueza, mas apenas transfere, sem qualquer causa justa, riquezas já produzidas por outrem. O dinheiro dos últimos “investidores” é apropriado pelos primeiros de modo ilegítimo, e todos os participantes do esquema estão, conscientemente ou não, dispostos a tomar, em benefício próprio, aquilo que pertence ao próximo. E isso obviamente constitui a quebra do oitavo mandamento: “Não furtarás”.


Notas:

1 William Perkins. A treatise of the vocations. Disponível em: .

2 Idem.


Revisão: Joaquim de Oliveira Neto.

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