O ofício diaconal na perspectiva das Escrituras

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bíblia aberta com um óculos fechado e uma caneta de marcar texto

1. Introdução
Ultimamente, uma quantidade impressionante de material tem sido escrito sobre o diaconato.1 Particularmente, as facetas bíblicas e históricas recebem grande atenção.2 Claramente, o fundamento bíblico e histórico desse ofício deve ser deixado para esses autores. Esse é meu ponto de vista pessoal também. Eu me limitarei, portanto, em lhe dar uma breve orientação bíblica e guiá-lo em uma pesquisa sobre diaconato, que pretende ser tão abrangente quanto possível, dentro dos limites estabelecidos. A perspectiva das Escrituras também é aplicada para todas as outras partes deste artigo.

2. Diaconato no Antigo Testamento
Nossa busca por um diácono do Antigo Testamento que execute seu serviço de caridade será infrutífera. Mas o que encontramos no Antigo Testamento, no entanto, são as normas que foram estabelecidas por Deus em relação à nossa vida, nosso relacionamento com Ele e também com o próximo. Cuidar de nossos irmãos, quando necessitados, deve ser visto como mandato divino. Desde o início, Deus revela para o homem que a terra e tudo sobre ela é Sua propriedade exclusiva (Lv 25.23). O homem só tem direito à posse. Ele recebe a tarefa de cultivar essa terra e desenvolver suas potencialidades (Gn 2.15). Ele é um funcionário do governo, um oficial comissionado ao serviço do Reino dos céus. Seu trabalho é o serviço ao Senhor.

Além disso, o homem foi incumbido pelo Senhor de ser uma benção para o seu próximo. Isso, por sua vez, move Deus em sua misericórdia para abençoar o homem pelo serviço prestado ao próximo. Quando Deus dá Sua benção, Ele faz isso abundante e generosamente e Ele exige que façamos o mesmo. Em Deuteronômio 15, isto é mencionado duas vezes (vv. 7, 8 e 10):

… não endurecerás o teu coração, nem fecharás as mãos a teu irmão pobre; livremente lhe darás (generosamente) e lhe emprestarás o que lhe falta.

Isto não se aplica somente ao irmão pobre, mas também a um escravo, ao órfão, à viúva, ao estranho e ao levita sem posses. Resumindo, todos aqueles que, por determinada circunstância, estão em dificuldades e por causa disso, estão inclinados a retroceder. “Dê-lhe generosamente e faça isso sem um coração rancoroso”, e assim, todos compartilharão alegremente os frutos da terra.3 Isso significa ser generoso para o seu próximo e, consequentemente, ser leal a Deus.

Dar ajuda a construir a comunhão dos santos. É impressionante a maneira como o Antigo Testamento, frequentemente, associa o ato de dar e compartilhar com uma ocasião festiva (Dt 16.10-15, 2 Cr 28.14-15). Trimp (1982) comenta que:

Durante a festa da colheita você deve estar em um espírito festivo. O banquete é um assunto da comunidade. Juntamente com os fracos e indefesos, você transforma a ocasião em uma festa. E quando você tem um banquete, você não pode se dar ao luxo de ser mesquinho, mas você vai ajudar aos outros.

Dar é uma obrigação. Deuteronômio 15 nos instrui que cuidar uns dos outros é um dever cristão (Mt 25.40) O irmão ou irmã necessitado tem o direito de receber assistência, ele não precisa suplicar ou implorar por isso. A ordem dada no verso 11 “pelo que te ordeno, dizendo: livremente abrirás a tua mão para o teu irmão…” deixa claro que o direito do próximo de receber assistência gera o dever nos outros de providenciar a ajuda que é necessária.

Além de tudo isso, o amor de Deus é abundante. Deus protege os direitos de órfãos e viúvas, mostra Seu amor ao estrangeiro, leva o solitário para a comunhão e auxilia os pobres.4 Ele dá Sua benção ao doador que obedientemente guarda seus mandamentos.5 Você amará o Senhor seu Deus de todo teu coração e seu próximo como a ti mesmo.

Apesar da bênção prometida de que Deus cuidaria de seus filhos enquanto eles estivessem cuidando de seu próximo, o povo de Israel muitas vezes não conseguiu cumprir essas exigências.6

3. O diaconato no Novo Testamento
No início do Novo Testamento também não temos referência direta aos diáconos. Entretanto, uma abundância de comentários são feitos em relação à vida de serviço de Cristo, cujo exemplo a congregação deve seguir. O ofício diaconal que começa a funcionar na congregação neotestamentária terá que exibir provas tangíveis de que está fazendo isso.

Cristo veio ao mundo para servir e dar sua vida como um resgate por muitos (Mt 20.28). Ele colocou sua chegada e sua vida na luz reveladora de um serviço total, abrangente e ininterrupto (Lc 12.37). Ao fazê-lo, Ele vira os regulamentos daquela época de cabeça para baixo, cuja consequência final é amar o seu próximo (Lc 6.27-38; 12.22-34). Nesta morte sacrificial, reconhecemos o amor de Deus por nós e pelo mundo (Jo 3.16-17). O amor de Deus em Cristo é um amor de doação, sacrifício e reconciliação (Rm 8.32; Gl 1.4; Ef 5.12).

Cristo está atento à preservação – o bem-estar – dos nossos semelhantes e assume suas necessidades e tristezas. Ele é “diakonos”, isto é, servo entre seus discípulos. Encontramos uma clara demonstração disso quando Cristo lava os pés de seus discípulos (Jo 13.17). É o amor de Deus em Cristo que é a fonte da “diakonia”.

Este dom de amor, o amor de Deus por nós em Cristo, também se estende a nós: “Amarás o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração”.7 Cristo sustenta sua vida e disposição como um exemplo para que possamos interagir de forma semelhante uns com os outros.8 O teor da constituição do Novo Testamento é esse mesmo amor (Jo 13.34; 15.12, 17; 1 Jo 3.23).

Com o objetivo de seguir o exemplo de Cristo, vemos que o amor cristão deve ser determinado por dois chamados: um chamado para se arrepender (para a salvação do nosso próximo) bem como um chamado para a caridade. A “palavra” e a “ação” estão intimamente entrelaçadas em Cristo (Mt 5.6-8). Isto se aplica não apenas ao nosso irmão e irmã na congregação, mas também aos nossos semelhantes fora dessa comunidade. A primeira congregação cristã entendeu isso explicitamente. A respeito dela nós lemos:

Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo” (At 2.45-46).

Em outras palavras, a própria congregação cuidava de seus irmãos e irmãs necessitados de maneira que “nenhum necessitado havia entre eles.” (At 4.34)

É a congregação, em sua totalidade, que desempenha a tarefa diaconal. Os crentes do Novo Testamento tinham uma percepção saudável do fato de que nada lhes pertencia, mas que tudo pertence a Deus. Eles entenderam que podiam ser mordomos dos dons de Deus que tinham em posse, mas também que deviam usá-los no serviço para seus semelhantes quando e onde fosse necessário. Desta forma, os primeiros cristãos no Novo Testamento cumpriram, de fato, o mandamento do Antigo Testamento (Dt 15.4).

Quando uma igreja cresce rapidamente, há uma grande chance de que esta supervisão entre ela diminua.  Por esta razão, não nos surpreende ler Atos 4.34,35 e ver uma congregação que já não distribuía diretamente os dons para seus membros, mas por meio dos apóstolos. Assim, a efetivação dos ofícios tornou-se uma necessidade. Na linha de frente, estavam os apóstolos, mas quando a carga tornou-se muito exigente, ela foi compartilhada com servos que, daquele momento em diante, se dedicariam especialmente a esse tipo de trabalho (At 6.1-7; 1 Tm 3.8-13).

4. Uma congregação diaconal
A congregação do Novo Testamento existe em virtude de uma comunhão de santos chamados à existência por Deus. Esta comunhão foi estabelecida por Cristo, fundada em Seu sangue sacrificial e fortalecida por Sua Palavra e Espírito. A congregação tem, em primeiro lugar, comunhão com Cristo e compartilha seus benefícios e, portanto, comunhão um com o outro (1 Jo 1.7; Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 21, P & R. 55).

Resumidamente, as seguintes características (parcialmente sobrepostas) podem ser encontradas em uma comunhão de santos, que é a fonte do diaconato:

a) Irmandade na fé
A comunhão dos santos é, acima de tudo, uma comunhão na fé. Sem comunhão na fé, fundamentada em Cristo, não há comunhão uns com os outros (1 Jo 1.7, At 2.42; 1 Co 1.2, 9).

b) Unidade interativa
O Novo Testamento refere-se frequentemente ao conceito de “corpo” para expressar o relacionamento interdependente dentro da própria congregação (Rm 12.4-5; Cl 1.8-24). A carta à congregação em Éfeso está repleta de referências a este efeito (Ef 1.22; 2.16; 4.3-16; 5.33-30). A congregação é exortada a ser um só corpo (Cl 3.15). Paulo admoesta a congregação em Corinto a permanecer unida, embora houvesse uma grande diversidade de dons, serviço e trabalho (1 Co 12.25).

A unidade da fé resulta em uma mesma mentalidade para atingir um objetivo bem definido (Rm 12.16; 15.15-16; Fp 2.2). Nós lemos que os apóstolos deveriam estar unidos para que o mundo pudesse conhecer o motivo dessa união (Jo 17.21-23). Muitas vezes, parece mais fácil criticar e atacar irmãos e irmãs que estão conosco na linha de frente (Tg 5.9). Mas, ao fazermos isto, nos tornamos, de fato, desertores e nos retiramos do campo de batalha. Ter uma mentalidade semelhante não acontece automaticamente; temos de nos esforçar para que isto aconteça (Rm 14.19) e nossa atitude deve ser moldada por este propósito (Fp 2.3-7; Tg 2.4; 5.9-16; 1 Pe 4.9-10).

c) Compaixão diaconal
Manter uma vigilância sobre o outro não é apenas um reconhecimento das necessidades existentes, mas um reconhecimento de talentos também. Os fortes e os fracos devem aceitar um ao outro (Rm 14,15). Ambos – conduzir uns aos outros e a vontade de perdoar – são essenciais, mesmo que alguém possa ter queixas contra você (Cl 3.13, Ef4.2). Somente quando a doutrina sobressai é que a tolerância cessa (Rm 16.17).

d) Envolvimento
O padrão é elevado: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos.” (Jo 15.13, 14). Uma congregação que não possui envolvimento ativo e a atitude “um por todos e todos por um” não passa de uma ilusão, está cortejando a própria morte. Quando os membros são separados do corpo, este perecerá (Versteeg, 1979).

e) Servindo em Amor
O amor fraterno forma o coração da existência cristã. Cristo é a fonte do amor mútuo do qual flui o amor pelo próximo (Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 21, P & R 55). Um cristão deve ser reconhecido por causa do seu amor para com os irmãos e irmãs (1 Jo 4.7-12). A propósito, um dos mandamentos de Cristo é: “Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros”.9 O amor fraternal é um amor ativo, “não amemos de palavra, nem de língua, mas de fato e de verdade.”10 Cada oportunidade deve ser aproveitada para administrar palavras de encorajamento, conforto e advertência para evitar que alguém se desvie.11

f) Concedendo dons
Cristo concede a sua congregação muitos dons para que ela seja edificada (1 Co 7.7). Esses dons podem ser diferenciados como dons da graça – charismata, dons do Espírito Santo – cujo objetivo é equipar e edificar a congregação, assim como os serviços – diakonia – que administram ao corpo de Cristo (1 Co 12.4-31; Rm 12.6-13; Cl 4.17). Quando alguém na congregação está passando por necessidade, enquanto temos abundância, como podemos não mostrar piedade para com ele e fechar nossos corações? (1 Jo 3.16-17). Neste contexto, é relevante fazer a observação de que os oficiais também pertencem aos dons que Cristo concede à sua congregação.

g) Responsabilidade
Na congregação de Cristo, nós não estamos isentos de obrigações uns com os outros; pelo contrário, somos mutuamente responsáveis para com nossos companheiros.12 A questão essencial está aqui: o bem-estar do nosso próximo. É por isso que há espaço para admoestação, bem como encorajamento para servir (Mt 1815; Hb 3.13; 10.24, 25).

h) Compartilhando (dentro da congregação)
Devemos compartilhar o que recebemos de Deus para nos ajudar uns aos outros (At 2-5). A mesa da Ceia do Senhor ocupa um lugar central aqui, pois é uma refeição comunitária compartilhada que não tem igual. Juntos, compartilhamos a graça que nos foi administrada, bem como comunhão mútua. Tanto os que ajudam como os que são ajudados são dependentes uns dos outros e precisam uns dos outros (ver Noordegraaf, 1980, pp. 51 e seguintes).i) Compartilhando (dentro da confederação de igrejas)Cuidar um do outro não se limita apenas à própria congregação. Quando a congregação de Jerusalém tornou-se necessitada, a de Corinto organiza uma arrecadação financeira impressionante, os resultados disso foram apresentados a Jerusalém pelo próprio Paulo (2 Co 8.1-15). Além disso, Paulo experimenta muito apoio pessoal da congregação em Filipos (Fp 2.30; 4.16-18).

j) Atraindo novos membros para a congregação
Uma congregação que entende sua tarefa diaconal será altamente visível na sociedade à sua volta e atrairá a outros13. A congregação está ativamente empenhada em atrair os outros, e fará bem entre si como para com todos. (Gl 6.10; 1 Ts 5.15).

Quando começamos a imaginar a extensão do propósito e alcance da congregação diaconal, veremos que ainda estamos muito aquém do modelo que nos foi dado.

Notas:
1 O autor escreve dentro do contexto holandês. No Brasil ainda não temos “uma quantidade impressionante de material” sendo escrito sobre o diaconato. O ministério Diakonia trabalha para fornecer à Igreja no Brasil material bíblico sobre o ministério diaconal. [N. do E.]
2 Harinck et al. (1992), Hendriks et al. (1968), Koole and Velema (1991), Kooy and Trimp. Ed. (1988), Noordegraaf (1991), Von Meyenfeldt (1955).
3 Êxodo 23.11; Deuteronômio 12.12-19; 14.26-29; 16.10-15; 24.17-22; 26.11-13.
4 Alguns textos: Deuteronômio 10.17,18; Êxodo 22.21-24; Salmo 41.2; 68.6, 7; 72.12,13; 82.3, 4; 146.
5 Deuteronômio 14.29; 15.10, 15; Jó 20.12-16; 31.16-20.
6 Isaías 1.17, 18; 58.5-7; Jeremias 34; Amós 5.11-13; Ageu 1.3-6; Naum 8.11; Ezequiel 16.49; 1 Samuel 25.11; Zacarias 7.9,10.
7 Deuteronômio 6.5; 10.12; Josué 1.7; Mateus 5.19, 22.37; 1 João 4.7-21.
8 João 13.15; Mateus 20.26-28; Romanos 12.9-10; Efésios 4.2; 5.2; 1 Pedro 1.22, 23; 3.8; Filipenses 2.5-11; 1 Tessalonicenses 4.9, 10.
9 João 13.34; veja também: João 15.12-17; 1 João 3.23; Romanos 13.8.
10 1 João 3.16-18; Gálatas 5.13; Lucas 3.11; Tiago 2.13-16.
11 2 Coríntios 8.7; 13.1; 1 Coríntios 12.25; Romanos 15.14; 1 Tessalonicenses 5.14.
12 Romanos 15.2,14; Gálatas 6.1,2; Hebreus 12.15; 2 Coríntios 13.1; 1 Tessalonicenses 5.11-15; Lucas 17.3; Efésios 4
13 Atos 2.47; 5.13-16; 6.7; Romanos 12.17-21; 14.18; Filipenses 4.5; Colossenses 4.5,6; Tito 2.7,8; 2 Pedro 1.6.


Artigo publicado originalmente na Clarion Magazine, 1998.

Tradução: Willian Bessa.

Revisão: Ester Santos.

Imagem concedida por Aline Guedes – Fotografia.

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