O Cristão e o Estado

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No dia 19 de Maio deste corrente ano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em uma entrevista ao vivo ao jornal Carta Capital, afirmou que: “(…) ainda bem que a natureza criou esse monstro do coronavírus (…) Porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem, que os cegos comecem a enxergar, que apenas o estado é capaz de dar solução a determinadas crises1 (Grifo meu).

Aqui não quero referir ao contexto moral da fala do ex-presidente, mas quero analisar o teor da doutrina que está por trás principalmente do segundo momento de sua fala: “Porque esse monstro está permitindo que os cegos enxerguem que os cegos comecem a enxergar, que apenas o estado é capaz de dar solução a determinadas crises” (Grifo meu). Essa análise não será apenas pautada num arcabouço político, mas terá acima de tudo uma análise frente a cosmovisão teológico-reformada.

Importa saber que o conceito doutrinário elencado pelo ex-presidente é um conceito leninista que enaltece o Estado como fonte única para determinar, regular e prover, sendo então, para o sustento social um ponto sine qua non, uma propagação da máxima de “Estado forte e centralizado”, conforme diz o próprio Lênin (1870-1924) falando acerca da necessidade do estado como centro unificador do socialismo: “O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista baseada na última palavra da ciência moderna, sem uma organização planificada de Estado que subordine dezena de milhões de pessoas aos mais estrito cumprimento de normas únicas de produção e distribuição”2.

A questão que levantamos é: “em que isto (as palavras do ex-presidente) torna-se contrária a um povo de confissão genuinamente protestante?”. Vejamos então, o que os dois dos principais arquitetos do protestantismo falavam acerca da relação da fé protestante com o estado, Lutero e Calvino, primeira e segunda geração da reforma protestante de 1517 respectivamente3.

Martinho Lutero (1483-1546), um dos precursores da Reforma Protestante em 1517, viveu em um período de transição do mundo Medieval para o estado moderno, onde o estado tal qual conhecemos hoje estava em seu período pueril. Tornar-se também importante frisar que Lutero nunca escreveu livros estritamente de cunho político, antes de tudo, assim como Calvino sua preocupação era teológica.

Ao escrever acerca da “doutrina dos dois Reinos ou dois Regimentos”, sua visão sobre o estado tornou-se mais clara, pois segundo Lutero, Deus constituiu dois tipos de governos entre os homens, um relativo ao governo espiritual qual figurava a mão direita de Deus, donde utiliza de sua Santa Escritura para que os homens tornem-se bons, o segundo governo seria o governo secular, sendo a mão esquerda de Deus, que faz uso da espada com a mesma finalidade do primeiro governo.4

Em seu escrito acerca da “Autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência”, Lutero mostra que as autoridades seculares devem aplicar e formular leis que estejam em consonâncias com os princípios cristãos, quando o mesmo autor fala da doutrina dos dois Reinos ou Regimentos, ele expressa que tanto as leis espirituais e o estado, são utilizados como ferramentas de Deus para admoestar, regular e ordenar o homem.

O segundo reformador, João Calvino (1509-1564) concomitantemente com Lutero, defende dois tipos de poderes, um espiritual e superior e outro civil que deve estabelecer princípios do primeiro poder. Em sua obra mais famosa: A Instituição da Fé Cristã no capítulo XX, intitulado “Do poder civil”, Calvino começa com a distinção do que chama de “governo da alma e justiça civil”. “(…) e já falamos suficientemente da primeira (duas formas de governo), que consiste no governo da alma, ou do homem interior, e visa á vida eterna, é preciso agora tratar da segunda forma, que diz respeito somente à justiça civil e à reforma dos costumes”.5

O pastor de Genebra também faz uma análise crítica a dois outros grupos de pessoas que defendem conceitos políticos antagônicos, um são os anarquistas, classificados por Calvino como Bárbaros6, e o outro grupo de pessoas, são aquelas que defendem o estado como forma única de regulamentação e governo centralizado. Os que pregam uma forma de anarquismo negam a autoridade outorgada por Deus aos homens e os que defendem poder ilimitado ao estado tentam transformar o estado em deus,tentando usurpar um senhorio do próprio criador, o que Agostinho chamaria de inversão da justa ordem7.

(…) sou compelido a fazê-lo, sobretudo porque, por um lado, não faltam desatinados e bárbaros que tentam arruinar toda a autoridade estabelecida por Deus, e, por outro, os aduladores dos príncipes lhes engrandecem ilimitadamente a autoridade que não duvidam em compará-la ao senhorio que é próprio de Deus. Por isso, a pureza da fé ficaria ofuscada caso não refutássemos esses dois erros. Acrescente-se ainda que esses assunto de muito nos serve para que nos mantenhamos no temor de Deus, reconhecendo quão grande é a sua bondade ao prover o gênero humano desses meios, a fim de que nos sintamos ainda mais incentivados a servi-lo e testemunhar que não lhe somos ingratos.8

Nesta citação Calvino mostra que tanto o governo da alma como o civil, deve ser meio para o reconhecimento do “quão grande é a sua bondade (Deus) ao prover o gênero humano desses dois meios”, o que é isto senão a manifestação da doutrina da Providência?! Isto mostra que o cristão não deve apelar para o anarquismo e nem depositar no estado totais confiança como sendo ele finalidade única para o bem estar do homem, mas os cristãos devem atribuir a Cristo o controle total do homem, e a partir de Cristo devem ser forjadas as leis quais o governo civil deve subordinar-se.

Muitos incorrem no erro, que segundo Calvino dá-se pela falta de compreensão do sentido da liberdade cristã, este erro nasce porque os homens não se aprofundam no conceito de libertas qual Cristo nos outorgou, caindo no erro do anarquismo, o que não condiz com o firmamento posto por Cristo em sua Providência.

Quando, de fato, ouvem o Evangelho promete uma liberdade que, segundo dizem, não pode reconhecer rei nem magistrado humano, mas somente a Cristo, eles não conseguem entender de que tipo de liberdade está se falando. E, assim, pensam que as coisas não podem ir adiante, a menos que o mundo inteiro adote uma nova forma de governo, na qual não haja juízes, nem leis, nem magistrados ou funções parecidas, as quais consideram limitações da sua liberdade. Mas aquele que sabe distinguir entre corpo e alma, entre a presente vida que é passageira, e a vindoura que é eterna, dirá com muita clareza que o reino espiritual de Cristo e o poder civil são realidades bem distintas entre si.9

Ainda nesta perspectiva afirma João Calvino: “Com essas afirmações, ele pretende dizer que é indiferente a condição em que nos encontramos, bem como as leis de que país vivemos,porquanto o reino de Cristo não consiste nessas coisas”.10

Deste modo Calvino expressa à importância do governo civil temporal, onde por esta forma de governo deve tornar-se um reflexo das leis outorgadas por Cristo em sua Palavra, sendo então necessário, o governo civil assim como é necessário ao homem o alimento, pois a Igreja de Cristo ainda encontra-se peregrina nesta terra.

(…) mas o escopo do governo temporal é manter e conservar o culto divino externo, a doutrina e a religião em sua pureza, guardar a integridade da Igreja, levando-nos a viver com retidão, conforme exige a convivência humana por todo o tempo que vivemos, adequando assim nossos costumes à vida civil, a fim de manter e conservar a paz e a tranquilidade comuns. (…) No momento, pretendo que se compreenda que se trata de inumana barbárie não requerer aceitar a sua necessidade, já que o governo não é menos necessário aos homens que o pão, a água, o sal e o ar, sendo sua dignidade muito superior a tudo isso, uma vez que não se limita àquilo que os homens comem e bebem para garantir sai existência, embora abranja a todas coisas na medida em que provê o que lhes permite a vida em comum. (…) é preciso que cada um possua o que é seu; que as relações entre os homens sejam justas, sem dano ou fraude; que a honestidade e modéstia reinem a fim de resplandeça a forma pública da religião entre os cristãos, e que a civilidade se estabeleça entre os homens. (Grifo meu).11

É preciso ressaltar mais uma vez, que em nenhum momento Calvino ou Lutero colocam no governo civil a esperança para o homem, ou até mesmo nenhum dos dois reformadores colocam o controle do estado como forma única de poder, pois o estado em si mesmo não pode fornecer tudo para todos sem que Cristo não providencie. Em Calvino encontramos conforme a citação anterior, conceitos como propriedade privada, relação de leis justas que fazem com que os homens não defraudem outros, afim de que o governo da alma resplandeça nas relações sociais, ou como diz Calvino: “a fim de resplandeça a forma pública da religião entre os cristãos”12.

Portanto, voltemos à questão inicial: “o que a frase proferida pelo ex-presidente (travestida com toda a sua gama de ideologia leninista) torna-se incompatível com uma confissão cristã?” E a resposta ressoa justamente nas acusações de Calvino, quando denuncia pessoas que fazem do estado uma forma de poder único, ou no conceito luterano quando formula os dois regimentos, lutando contra aqueles que alocam sua esperança no regimento civil. Tanto para Lutero quanto para Calvino, os dois poderes são necessários, os dois poderes são ferramentas de Cristo e o poder civil deve estar subordinado as leis de Deus, onde quando este governo civil torna-se em deus ( e assim cria-se o ídolo, um deus chamado estado), e as leis não são mais respaldadas na palavra de Cristo, as leis humanas tornam-se ineficazes e anticristãs, o que é bastante comum aos regimes socialistas e comunistas defendido pela ideologia do ex-presidente).

Deve ser observado que acima do estado, estamos sujeitos enquanto cristãos, as leis de Cristo e a Ele devemos obediência, temor e tremor e Nele devemos colocar todas as nossas necessidades, somente Cristo pode suprir e sanar as crises do mundo, sendo um estado sem Cristo ineficiente. “Mas, como permanece válida a sentença proclamada por Pedro, celeste pregador, ao dizer que importa ‘antes obedecer a Deus do que aos homens’ (At 5:29)”.13

Portanto a afirmação do ex-presidente é incompatível ao cristão verdadeiramente confessional, pois o governo dos homens é suscetível a desvio, porém o governo de Cristo é eterno e imutável. Soli Deo Gloria!

NOTAS:

¹ Cf. https://folhape.com.br/politica/politica/coronavirus/2020/05/20/NWS,141161,7,1682,POLITICA,2193-AINDA-BEM-QUE-NATUREZA-CRIOU-ESSE-MONSTRO-CORONAVIRUS-DIZ-LULA-ATACAR-BOLSONARO-SOBRE-ATUACAO-GOVERNO.aspx

2 LÊNIN, “O infantilismo esquerdista e a mentalidade pequeno-burguesa”. 9 de maio de 1918, vol.27,p.339.

3 É nosso dever informar que o cristianismo ortodoxo não defende a bandeira do anarquismo, o próprio Jesus Cristo muitas vezes indagado acerca da posição do estado romano, nunca insurgiu numa política anarquista, mas separava as funções tanto na perspectiva espiritual como de governo civil, conforme vemos em Mc 12:13-17; Mt 22:15-22; Lc 20:19-26.

4 Cf. BARBOSA. Luciene Muniz Ribeiro. Estado e a educação em Martinho Lutero: a origem do direito à educação. Cf. STAHLHOEFER. Alexander De Bona. “Política” em Lutero: uma análise a partir da doutrina dos dois regimentos. Cf. LUTERO, Martinho. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência: In obras selecionadas, Vol. 6, 1º Ed. São Leopoldo: Sinodal/ Porto Alegre: Concórdia,1996

5 CALVINO. João. Instituição da Fé Cristã, Ed. UNESP,Tomo II, p.875.

6 Ibidem.

7 Cf. Agostinho. De libero Arbitrio.

8 Ibidem.

9 Ibidem, p.876.

10 Ibidem.

11 Ibidem, p. 877.

12 Ibidem.

13 Ibidem, p.902.

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Quem sou? : Pecador! Não há outra definição maior que esta que possa ser a síntese de quem sou, nascido e concebido em pecado (Sl 51), porém por um Deus que de modo soberano e gracioso me resgatou através de seus próprios desígnios! Sola Gratia! Enquanto persona física, sou Claubervan, ou como grande parte me chamam: Lincow. Apaixonado e casado com a Dra. Rafaella Moreira, somos servos de Cristo, membros da Igreja Reformada em Paulista, sou bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Integrada - FATIN, Licenciado pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre também pela UFPE ( na área de Medieval), com a dissertação: “Agostinho e Pelágio acerca da relação entre o livre-arbítrio humano e a soberania divina: Uma análise em confronto com o incompatibilismo libertário moderno.”

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